Preparadas as mochilas com os apetrechos que a caminhada e o objectivo exigiam, iniciámos a jornada até ao rio Mondego.
Éramos 7 como os magníficos: o anfitrião Ernesto Almeida, o irmão Abel (casado na minha terra), o jovem filho deste – Carlos, o Manuel António e o Paulo Amaral, todos com três elos em comum a uni-los: são nativos de Abrunhosa, familiares entre si e emigrados nas europas: os primeiros quatro em França e o último na Suíça. Os 2 restantes caminheiros eram também migrantes à sua maneira: o covilhanense Fernando Fazenda, ensina nos Açores há 15 anos com a mulher e filha do Ernesto. Eu, migrante sou, em busca sei lá de quantas raízes das terras e das gentes.
O resto de tarde, a mal dormida noite ao relento junto às fragas e canadas (pequenos açudes) do Mondego e os rituais do acordar e do voltar a caminhar fizeram-me lembrar o misticismo desse deus desconhecido que John Steinbeck tão bem descreveu.
Em cada Agosto que passa os meus companheiros de ocasião aproveitam as férias para cumprir uma única vez o mesmo místico ritual: mal atingem o estreito Mondego e sem esperar por recuperar do esforço da íngreme caminhada, 7 vezes se ajoelham em 7 sítios diferentes da borda do rio, como quem lhe beija as límpidas águas; e assim que a luz ténue da madrugada o permite, outras tantas 7 vezes se ajoelham nos mesmíssimos sítios percorridos no fim da tarde da véspera. Só depois o regresso à terra-mãe.
O Ernesto, esse, viveu aqueles momentos com uma devoção e um fervor únicos. De poucas falas, várias vezes me apercebi que sussurrava às águas, quase as beijando. Percebi depois que muito do pai dele - o Ti Manel Almeida - impregnava aqueles ermos. Contou-me que o pai tinha com o Mondego uma relação mística, lhe conhecia de cor o desfiar sussurrante das águas, as voltas que estas davam a contornar os rochedos de granito e até os hábitos dos peixes que então abundavam naquelas águas mansas e que ele era exímio e único nos métodos que usava para os capturar.
Mas o que me contou quando regressávamos a Abrunhosa do Mato deixou-me ainda mais deslumbrado. De propósito, fez com que parássemos num sítio designado por Vale Figueira, ali onde jazia abandonado um casebre de granito que o Ernesto apelidou de palheiro do Cetra. Disse-me baixinho:
- Foi aqui que o Cetra viveu até meados dos anos 60, longe de tudo e de todos, sozinho, tendo por companhia apenas uma grande cobra que diariamente alimentava com leite das suas ovelhas; punha o leite numa púcara da resina e a cobra vinha à púcara beber. E, sabe, ele andava metido com as bruxas do monte.
Assim me relatou e os demais companheiros se apressaram a confirmar, não fosse o Ernesto um vivido serrano de 64 anos. A estranha narrativa trouxe-me à memória uma misteriosa personagem da banda desenhada que parecia falar com as cobras e se chamava simplesmente Silêncio. (*)
Quem sabe se não encontraria ali esse desconhecido deus da terra por quem todos um dia daremos a vida.
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(*) “Châmume silêncio i sô bontipu”
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