sexta-feira, 24 de junho de 2011

Vidas de muitas guerras e paz tão pouca

Gosto de leituras "entre linhas". De mensagens subliminares.
E assim respondo às interrogações de alguns/algumas amigos(as) sobre o post antecedente.
E gosto muito de poesia, sobretudo do meu Eugénio de Andrade, velho companheiro da mesa de cabeceira, como gosto de vaguear pela "Rosa do Mundo / 2001 Poemas para o futuro", um extenso e abrangente (no tempo e no espaço) trabalho de recolha de poesia feito para o "Porto 2001", Edição Assírio & Alvim.
Este gosto vem-me dos tempos da Coimbra de 1966/69, gosto que procurava conjugar (conciliar?) com a luta contra a ditadura, ali desde a rua estreita onde há cerca de 70 anos vive a Real República Bota Abaixo.

Claro que o poema "Despedida" nada teve ou tem a ver com a porca da política. Porca, por mor dos políticos de manjedoura, sejam eles peixes de águas profundas ou cá mais da beira-água.
Valha a verdade: o meu "padrinho" Sócrates - de quem tanto falei e com quem tanto brinquei e gozei neste blogue - despediu-se do poder com dignidade.
O rapazola que agora lhe tomou o poiso precisa de muito mais coragem para dar a volta ao regabofe em que o país se atolou do que aquela que aparenta revelar.
Desde logo, precisa de se livrar do padrinho de baptismo político. Como precisa de se livrar dos novos padrinhos e da legião de afilhados que não tardarão a bater-lhe à porta a exigir o folar da Páscoa, ansisosos de se tornarem "califas no lugar do califa."

Eu, limito-me a precisar de paz.
E de me ir libertando das muitas guerras que vivi e nas quais fui parte activa; por vezes, demais, armado em guerreiro e líder de Operações Especiais.

Preciso de me ir libertando dessa guerra que me persegue há 39 anos, feitos este mês e que continua alapada ao corpo e à alma, um pouco por culpa do tio Segismundo Freud. Lá me vou entendendo com ela, procurando gerir os diabinhos que me perseguem, brincando com eles.
Sempre, mas sempre, sem esquecer aquele lema: "Ranger uma vez, Ranger toda a vida", razão que julgo me faz manter de pé firme, como que predestinado a não morrer na praia, longe dos combates de que me recuso a fugir ou a deixar matar de morte matada. 

Mas o que mais preciso agora é de me libertar das outras guerras, sobretudo das que se intrometem e vandalizam as nossas vidas pessoais, íntimas e afectivas.

Por isso me soube tão bem aquela tarde inteira de paz que vivi ontem na casa da muito amiga Dina, sita mesmo à beirinha do mar da Costa Nova, logo ali ao atravessar da rua, onde até tempo sobrou para trabalhar.
Preciso de me reencontrar com o mar, paixão que me acompanha e impele dede os primeiros recordares da infância.

É do que estou precisado, segurando na mão esquerda [que a direita tem outros donos] a poesia do Eugénio de Andrade, esse  génio que tão bem soube conjugar a escrita com a terra e com o corpo.
...
Onde me levas rio que cantei,
esperança destes olhos que molhei
de pura solidão e desencanto?
Onde me levas?, que me custa tanto.
...
___
- 1ª imagem: extraída de "Guerra Colonial", de Aniceto Afonso e Carlos de Matos Gomes, Edição Notícias Editorial/2000.
- 2ª imagem: pôr do sol na Costa Nova, ontem.
- O poema, esse, saquei-o do XXX capítulo de "As Mãos e os Frutos", de Eugénio de Andrade / Poesia e Prosa [1940 - 1980], Edição Limiar, 2ª edição revista e aumentada.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Despedida

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.
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- Eugénio de Andrade, "Adeus", extraído de Poesia e Prosa (1940 / 1980), Ed. Limiar.
- Retrato do poeta, de Emerenciano (1988), extraído de "O Outro Nome da Terra", Outubro de 1988, Ed. Limiar.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Regresso, agora com canção índia

Além desabrochava uma flor.
E essa flor, quando aqui a vejo, essa flor,
agora, ai, tão longe, faz-me chorar.
Essa flor, sempre que a vejo, essa flor,
desabrochava tão fresca:
desabrochava
bela, fresca, amarela.

 

- Poema dos índios de Tewas, América do Norte, extraído de "Rosa do Mundo - 2001 Poemas para o Futuro" /  Edição Porto 2001, Assírio & Alvim / 3ª edição, de Agosto de 2001 / Versão de Herberto Helder /pág. 172.
- Imagem extraída da contracapa de "Fort Whelling", de Hugo Pratt,Tomo 2, Edições ASA, 1ª edição, de Nov. de 2002.

Regresso com Maiakowski

...
E o sol então:
«Existes tu, existo eu,
Existimos, meu velho, nós os dois!
Subamos, pois, poeta,
à altura das águias,
cantemos
sobre os cabelos do mundo.
Sobre ele eu lanço esta luz que me é própria
e tu, a tua -
em verso.»
*
- Vladimiro Maiakowski / "Autobiografia e Poemas", Colecção Forma, da Editorial Presença. Edição sem data. Comprado em Março de 1972 na "Unitas - Cooperativa Académica de Consumo, S.C.R.L.", à Rua da Sofia, 73-2º, telef. 27743 - Coimbra.
- Foto extraída do blogue http://jamilkauss24.blogspot.com.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

UM PAÍS INSUPORTÁVEL

São de Marinho Pinto, Bastonário da Ordem dos Advogados, estas palavras para meditar: 
A falta de bom-senso e humildade constitui uma das principais causas da degenerescência da justiça portuguesa. Tudo seria simples se houvesse uma coisa que falta cada vez mais aos nossos magistrados: bom senso.
Uma mulher com 88 anos de idade morreu no seu apartamento em Rio de Mouro, Sintra, mas o corpo só foi encontrado mais de oito anos depois, juntamente com os restos mortais de alguns animais de companhia (um cão e dois pássaros).
Este caso...interpela-nos a todos não só pela sua desumanidade mas também pela chocante contradição entre os discursos públicos dominantes e a dura realidade da nossa vida social. Contradição entre promessas e garantias de bem-estar, de solidariedade e de confiança nas instituições públicas e uma realidade feita de solidão, de abandono e de impessoalidade nas relações das instituições com os cidadãos. 

Apenas duas ou três pessoas se interessaram pelo desaparecimento daquela mulher, fazendo, aliás, o que lhes competia. Com efeito, uma vizinha e um familiar comunicaram o desaparecimento às autoridades policiais e judiciais mas ninguém na PSP, na GNR, na Polícia Judiciária e no tribunal de Sintra se incomodou o suficiente para ordenar as providências adequadas. Em face da participação do desaparecimento de uma idosa a diligência mais elementar que se impunha era ir à sua residência habitual recolher todos os indícios sobre o seu desaparecimento. 
É isto que num sistema judicial de um país minimamente civilizado se espera das autoridades policiais e judiciais, até porque o caso era susceptível de constituir um crime. O assalto e até assassínio de idosos nas suas residências não são, infelizmente, casos assim tão raros em Portugal. Mas, sintomaticamente, as autoridades judiciais não só não se deram ao trabalho de se deslocar à residência como, inclusivamente, recusaram-se a autorizar os familiares a procederem ao arrombamento da porta de entrada. 
E tudo seria tão simples se houvesse uma coisa que falta cada vez mais aos nossos magistrados: bom senso. Mas não. Dava muito trabalho ir à uma residência procurar pistas sobre o desaparecimento de uma pessoa. Dava muito trabalho oficiar outras instituições para prestar informações sobre esse desaparecimento. Sublinhe-se que um primo da idosa se deslocou treze vezes ao tribunal de Sintra para que este autorizasse o arrombamento da porta da sua residência. 
Mas, em vez disso, o tribunal, lá do alto da sua soberba, decretou que a desaparecida não estava morta em casa, pois, se estivesse, teria provocado mau cheiro no prédio. 
É esta falta de bom-senso e humildade perante a realidade que constitui uma das principais causas da degenerescência da justiça portuguesa. Os nossos investigadores (magistrados e polícias) não investigam para encontrar a verdade, mas sim para confirmarem as verdades que previamente decretam. E, como algumas dessas verdades são axiomáticas, não carecem de demonstração.

Mas há mais entidades cujo comportamento revela que a pessoa humana não constitui motivo suficientemente forte para as obrigar a alterar as rotinas burocráticas e impessoais. 
A luz da cozinha daquele apartamento esteve permanentemente acesa durante um ano, ao fim do qual a EDP cortou o fornecimento de energia eléctrica, sem se interessar em averiguar o motivo pelo qual um consumidor deixou de cumprir o contrato celebrado entre ambos.
Os vales da pensão de reforma deixaram de ser levantados pela destinatária, mas a segurança social nada se preocupou com isso. Ninguém nessa instituição estranhou que a pensão de reforma deixasse de ser recebida, ou seja, que passasse a haver uma receita extraordinária sem uma causa. E isto é tanto mais insólito quanto os reformados são periodicamente obrigados a fazerem prova de vida. Mas isso é só quando estão vivos e recebem a pensão. 
Os CTT atulharam a caixa de correio daquela habitação de correspondência que não era recebida sem que nenhum alerta alterasse as suas rotinas. 
Finalmente, as finanças penhoraram uma casa e venderam-na sem que o respectivo proprietário fosse citado. Como é que é possível num país civilizado penhorar e vender a habitação de uma pessoa, aliás, por uma dívida insignificante, sem que essa pessoa seja citada para contestar? Sem que ninguém se certifique de que o visado tomou conhecimento desse processo? Como é possível comprar uma casa sem a avaliar, sem sequer a ver por dentro? Quem avaliou a casa? Quem fixou o seu preço? 

Claro que agora aparecem todos a dizer que cumpriram a lei e, portanto, ninguém poderá ser responsabilizado porque a culpa, na nossa justiça, é sempre das leis. É esta generalizada irresponsabilidade (ninguém responde por nada) que está a tornar este país cada vez mais insuportável.
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Texto extraído da revista Advocatus, de 14.2.2011, por sua vez reproduzido dum artigo de opinião no Jornal de Notícias.