domingo, 6 de julho de 2014

Literatura de combate

Quando a 10 de Junho de 1972 embarquei no boeing militar que me levou até Angola, seguiam numa mala do porão alguns livros das minhas referências.
À mistura, ia uma garrafa da melhor bagaceira que o meu saudoso pai produziu, num tempo eu que eu já o ajudava à missa dos brancos e dos saborosos tintos de meia curtimenta ou bica quase aberta.
A emalada mistura deu bronca: 
Talvez por se ter tomado de amores pelos livrinhos, o bagaço foi-se a eles, derramou-se em cima dos ditos (por debaixo é que não ficou, senão o resultado seria diferente), possuiu-os à fartazana.
Tal orgasmo tinha de dar nisto…
O Frederico, coitado, ficou neste estado...
O bagaço quis lá saber de "A Origem da Família, da Propriedade e do Estado".

Nada fazia prever este derramado destino quando comprei o perigoso livro em Setembro de 1971, na Livraria-Papelaria Elo, sita à rua José Maria da Costa, 40, em Mafra, onde os oficiais milicianos aprendiam a matar.
Agora que vai sendo tempo de registar a verdade histórica, ficam estas perguntas para o Santos, Alferes Miliciano de Operações Especiais:
1ª - Foi para isto que o regime investiu na formação dum garboso e, por sinal, bem apessoado oficial miliciano de infantaria, o qual – ainda por cima - foi a correr uns meses depois para Lamego, tomado de amores pelas Operações Especiais?
2ª - Atão foi a partir deste barro que te fabricaram no Centro de Instrução de Operações Especiais, ó ranger de meia tigela?
3ª - Que raio de explosiva paixoneta ligaria a tua amada G3 e o erótico cinturão de granadas e cartucheiras de 80 munições 7,62mm (fora as que levavas no saco), por exemplo:
- às “Citações do presidente Mao Tsé-tung”, que nunca leste e estavas cheio de razão, que o tipo não prestava para nada, dava-se a luxos burgueses, tinha maus hábitos de consumo e, ainda por cima, era um imoral: soube-se quando morreu que “comia” criancinhas às escondidas do povo, em vez de o fazer à vista de todos e de forma regrada, ao pequeno almoço, apanágio do verdadeiro comunista?
- e ao “Resumo”, do J.C. Ary dos Santos, comprado em 2 de junho de 1972, por uns míseros 35$00, no distribuidor Abegão, sito à Rua Gonçalves Zarco, 3 – Telef. 26624, em Coimbra?
- e ao “Provavelmente Alegria”, do improvável poeta José Saramago, comprado por 40$00 algures em Lisboa, em Fevereiro de 70?
- e à “antologia / poética I” do Nicolas Guillen, comprado com desconto para os sócios que, como tu, aderiram à antifascista UNITAS – Cooperativa Académica de Consumo, SCRL, com sede na subversiva livraria da Rua da Sofia, 73-2º, Telef. 27743, Coimbra?
- e aos “poemas” do Bertolt Brecht, comprado no mesmo sítio e condições, mas em Março de 1972?
- o mesmo dizendo dos “poemas políticos” do Paul Eluard, com prefácio do Louis Aragon, desta vez em 2 de Junho de 1972?
4ª - Que tara foi essa que te deu, ó meu, estavas tu a 8 dias de embarcar na defesa da ditosa Pátria que tais filhos tem?
- Só para te lembrar, que a História não perdoa: até o teu sogro, alentejano da classe média alta e que até gostava muito de ti, não se continha e chamava-te “bolchevista”!
Não contente:
5ª - Mal puseste os pés no sagrado chão africano e os olhos numa reluzente e fogosa funcionária do Casão Militar de Luanda [sim, nesse vulcão sempre em chamas, ou já te esqueceste!] e logo te arrimaste…
- aos “Poemas” do MAIAKOVSKI/Маяко́вский, comprados em Maio de 73, nas indústrias ABC, SARL, Telef. 23543, na linda e sedutora Luanda?
Parece que deixaste por Bustos outros livros, a quem disseste adeus até ao meu regresso. Por cá ficaram, à espera da tua retoma.
6ª – Retoma que te levou até ao anarco-sindicalismo, ao Trotsky e à Rosa Luxemburgo! 
7ª – Como se não bastasse, estragaste tudo quando te apaixonaste pela Alexandra Kollontai (A oposição operária 1920 – 1921) e, por fim, te perdeste de amores pela "História do Movimento Macknovista (A insurreição dos camponeses da Ucrânia)", do Archinov, movimentos supostamente contra-revolucionários que acabaram esmagados, sem dó nem piedade, pelo regime soviético.
Valha-nos uma coisa:
8ª - Extinto o vulcão revolucionário do pós 25 de Abril, acabaste por descobrir que, afinal, o único sol que alumia é aquele que teima em se esconder neste alvorecer do princípio de verão.

Como tudo tem um fim, 
a desilusão morreu uns anos depois do “che guevara”, livro de bolso em inglês, que o amigo Hilário Costa (filho), trouxe dos USA em Setembro de 72, quando vieste de férias ao Puto ver a filhota de 6 meses e a demais família.
Afinal, o herói maior, o quase deus da nossa juventude, fartou-se de limpar o cebo a camaradas que ousavam fazer-lhe frente! 
Rais parta a revolução e a libertação dos povos que nunca chegam a ser verdadeiramente livres!

Para responder a tanta mágoa a ensombrar a história das nossas vidas, só mesmo uns
blues da morte de amor

já ninguém morre de amor, eu uma vez
andei lá perto, estive mesmo quase,
era um tempo de humores bem sacudidos,
depressões sincopadas, bem graves, minha querida.
mas afinal não morri, como se vê, ah, não,
passava o tempo a ouvir deus e música de jazz,
emagreci bastante mas safei-me à justa, oh yes,
ah, sim, pela noite dentro, minha querida.
[ler o resto do poema, AQUI]
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- Poema de Vasco Graça Moura - ”Antologia dos Sessenta Anos”, Edições Asa, Fev. de 2002.

1 comentário :

Anónimo disse...

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