quarta-feira, 2 de setembro de 2009

De como o mar está cheio de peixes que sabem nadar

Eles não precisam da canção do Zeca Afonso (O que é preciso é animar a malta!).
Eles sentem-se como peixe jovem que sabe nadar, e bem. Mas foi proibido de o fazer pelo avô-peixe.
Como ando atento ao mundo aquático que me rodeia e apesar das últimas pescarias em branco, foi meio escondido por entre pedras, navios afundados e sargaços mil que ouvi o interessante diálogo familiar. Oiçamos, pois.
Do alto do seu saber de experiência feita, anos e anos a nadar, a nadar, a nadar, (1)  assim falava o avô-peixe ao agitado cardume dos peixes-crianças:
- Vocês ainda são muitos novos! Ainda têm muito que aprender! Nós, os velhadas, é que sabemos o que é a vida!
E lá continuou, do cume do seu enegrecido rochedo:
- Com que então já querem atirar-se ao mesmo prato das saborosas minhocas do mar de que nos vimos alimentando há séculos e seculorum? 
Têm muito que esperar! Fiquem-se pela farinha maizena, pela papinha! 
Era o que nos faltava! Bem podem esperar sentados nas pedritas do mar!
A quererem ser livres neste mar que é nosso, ó fedelhos dum raio!
- Este mar que há-de ser nosso até eu cair da cadeira! [como o outro, o peixe-salazar]

Com um ar cada vez mais sério e teatral, prosseguiu: 
"Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um Povo que quer o mar que é teu..."
[etc., etc., etc. e tal] (2)

Quanto mais o avô-peixe - qual D. Sebastião - se perdia por entre o nevoeiro e continuava a falar d' El-Rei D. João Segundo, da roda da nau que voou três vezes (voou três vezes a chiar), das cavernas e tectos negros do fim do fundo, do homem do leme que tremeu e disse «El-Rei D. João Segundo», mais o  numeroso cardume dos peixes-arraia-miúda se ia afastando, afastando. 
Afastando.
Até que perderam de vista o avô-peixe, o pai-peixe, a mãe-peixe,  a peixeirada.
Finalmente, pararam. 
Um deles, que me pareceu o líder, dirigiu-se aos demais. Em tom apaixonado, mas firme, começou assim:
No lugar dos palácios desertos e em ruínas
À beira do mar,
Leiamos, sorrindo, os segredos das sinas
De quem sabe amar.
...
... 
Gosto muito de robalos, douradas, sargos e pargos. Desde que sejam "quileiros".
Os juvenis, esses, devolvo-os ao mar.
Que o futuro a eles pertence.
__
(1) Tal como o boneco das pilhas duracell, o avô-peixe nadou durante 160 anos e teima em voltar a nadar mais outros 160. O autor destas linhas, esclarece que, na morfologia peixeira, esta idade corresponde a 10 vezes a idade do homem-peixe-que-teima-em-voltar-a-nadar.
(2) Era óbvio que o avô-peixe citava "O Mostrengo", celebrado poema da "Mensagem", da autoria de Fernando Pessoa-Ele-Próprio.
Deixei de ter dúvidas: o avô-peixe continua agarrado aos fantamas do passado, à poesia do antigo regime, à vertente épica e passadista do Poeta dos grandes heterónimos.
O avô-peixe continuava a desprezar os Álvaros de Campos, os Ricardos Reis, os Albertos Caeiro.
E andei eu, guevarista de meia tijela, a ler poemas de Abril na Assembleia Municipal...
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CITAÇÕES: 
- Mensagem, de Fernando Pessoa, Colecção Poesia * Edições Ática, 13ª edição, págs. 62 e 63;
- Poesias, de Álvaro de Campos, mesma editora, 1ª edição, pág. 19.
- Imagem da capa: Exigir o Impossível, de Herbert Marcuse / Ed. Lobo Mau / Editorial Teorema /25 de Junho de 1974.

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